As matérias temporais


by João Sousa Cardoso, January 2025



A reunião inesperada de dois artistas oriundos da pintura mas com universos tão particulares e de gerações distintas como Pedro Tudela (1962) e Sérgio Fernandes (1985) constitui uma oportunidade privilegiada para compreendermos as afinidades secretas, as tensões formais e a vaga de fundo entre dois dos autores mais singulares na arte contemporânea portuguesa.

Num tempo marcado pela polarização ideológica, pela agudização das guerras culturais e pelo caudal ininterrupto de imagens fortes que animam a atualidade da economia digital (e a competição mediática no mundo da arte), entrevemos nesta exposição o horizonte de uma gravidade ancorada nas formas concisas de uma fatura de rigor oficinal face aos labirintos da criação, na lentidão do engendramento impercetível das subjetividades e de uma certa benevolência, contra o pano de fundo de um silêncio que transporta a violência dos séculos e a dor calada. Uma espécie de indiferença paisagística – indistintamente arcaica e urbana – que podemos qualificar de existencial, ascética ou portadora de um anseio espiritual, mas invariavelmente participativa num esclarecido diálogo com a cultura técnica e a história das disciplinas.

Os dois artistas estabelecem nesta mostra um diálogo fraterno que congrega a pintura, o desenho sobre papel, a fotografia, o vídeo e objetos escultóricos, convocando ainda matérias como o metal fundido, o vidro soprado e o som. A aproximação das duas obras permite a iluminação mútua dos respetivos reportórios sob perspetivas renovadas e surpreendentes. Os motivos orgânicos ou vegetalistas nas telas de grande formato de Sérgio Fernandes, por exemplo, recordam alguma da pintura inicial de Pedro Tudela, em meados da década de 80, marcada pelo vocabulário sobrecarregado de um sensualismo (não sem ironia) barroco; enquanto a investigação sonora neste autor (mesmo se vertida em forma escultórica como os cinco galhos vazados em latão que evocam o pentagrama da notação musical) elucida sobre a dimensão tímbrica dos jogos de perceção cromática (as atmosferas, as texturas, as notas de cor, a “luz interior” que o brilho das velaturas em óleo por vezes oferece) em toda a amplitude do leque de reverberações sensíveis na pintura de Sérgio Fernandes.

Em ambos os artistas reconhecemos a circunspeção do equilíbrio calculado entre a estrutura e o controlo da forma (a presença da geometria, a simetria, a cruz, a serialidade, a grelha) por um lado; coincidindo, por outro lado, com o gesto livre da hospitalidade relativamente ao comportamento imprevisto dos elementos, aos acontecimentos físicos e à corrupção dos materiais pela passagem do tempo. Essas qualidades resultam evidentes em Tempo (2024), um conjunto de bandeiras de segurança balnear consumidas pelo sol e pelo vento alinhadas por Pedro Tudela num friso ou na energia estática dos vinis que o artista dá a escutar (incluindo o pó, os riscos, as contingências do suporte), visibilizando a sonoridade do médium e materializando o dispositivo da inscrição fonográfica; como em Sérgio Fernandes a prática da pintura com a tela disposta no chão, investida a toda a volta, renunciando a pincéis, trinchas ou espátulas mas distribuindo a tinta diretamente com a mão, conduzindo-a por sucessivas inclinações, gerindo os cúmulos pelo peso da tinta sobre a trama do algodão, os empastelamentos, as bolsas, as rugosidades pela oxidação do óleo e os escorrimentos, produzem uma pintura matérica de grande efeito expressivo na sedimentação das marcas do processo. Em Pedro Tudela (além da usura das bandeiras, as várias peças em metal fundido guardam os vestígios das uniões na cofragem e a cacheira que liga a cana ao propósito é mantida nas seis campânulas de vidro soprado que compõem o gamelão) como em Sérgio Fernandes (nas sucessivas camadas, acumulações e acidentes), a forma parece salvaguardar os modos do fazer.

O sangue vivo ou coagulado na pintura de Sérgio Fernandes e a frieza do metal ou o lustro negro em Pedro Tudela assinalam o fio da navalha entre a vida e a morte, atentando sobre a transitividade, a transitoriedade, a instabilidade da condição precária das coisas à face da terra e a necessidade vital do cuidado e da cura. Donde, Tudela convocar a fisionomia irrepetível de pequenos ramos, pedras cortantes e um cajado (pintado e volvido mastro sem bandeira) encontrados em deambulações na paisagem natural mas associados a rudimentos metálicos e perfurações apropriadas de instrumentos da vida marítima, da náutica ou da construção; enquanto Fernandes discorre sobre a incontinência da matéria, a trasbordante liquidez dos elementos naturais, a potência derivativa das imagens. Como se descobríssemos, subterraneamente, uma lógica arborescente, rizomática ou diluente comum às duas obras que aponta num só gesto a devastação e a fecundidade, o território inabitado e as pulsões animais, a massa e o inefável das modelações metereológicas. Donde, o título desta exposição, Yepsen, acrescido de um s (sugerindo foneticamente “sense”, “sentido” ou “sentidos”) aludir ao termo no inglês medieval relativo à unidade de medida do volume desenhado pelo espaço côncavo das mãos juntas em forma de concha, o contentor instável e provisório capaz de encerrar um elemento que se esvai inelutavelmente por entre os dedos. Como a impermanência da luz de duas lâmpadas tubulares cruzadas em arranque intermitente cria, em TIALTNGO (as iniciais de There is a light that never goes out, tema dos The Smiths aqui esculpido até ao irreconhecível) a imagem lutuosa e faiscante de um nocturno em tormenta.
           
A vibração cromática (sob a influência de Mark Rothko) nas telas de Sérgio Fernandes como a composição tonal, a cadência, o ritmo intervalar entre as campânulas de vidro numa waveform em Pedro Tudela (na senda de Paul Klee), sugerem esquemas e cadeias de transmutação próprias de um compêndio de alquimia numa obra ao negro. A alusão constante a sequências de afluência e transubstanciação (as declinações do óleo em texturas ou nebulosas em Fernandes e a metasonoridade em Tudela) recordam que a experiência estética se elabora justamente no movimento de circulação entre os estados da matéria, na variação do momento e na duração. Diante da inelutável finitude da condição terrena de todas as coisas presentes. E talvez que – como sondamos no trabalho dos dois artistas unidos na mesma consciência da fuga – de entre as matérias temporais, apenas ressoem aqueles corpos atravessados pelo frémito imperfeito dapoiesis onde os atalhos do pensar, o fazer manual e o sentir no tempo coincidem como o toque exato do tinir do ouro.
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